sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Desculpas.....


Estou gravemente enfermo.
Gostaria de manifestar publicamente minhas escusas a todos que
confiaram cegamente em mim. Acreditaram em meu suposto poder de
multiplicar fortunas. Depositaram em minhas mãos o fruto de anos de
trabalho, de economias familiares, o capital de seus empreendimentos.
Peço desculpas a quem assiste às
suas economias evaporarem pelas chaminés virtuais das Bolsas de
Valores, bem como àqueles que se encontram asfixiados pela
inadimplência, os juros altos, a escassez de crédito, a proximidade da
recessão.
Sei que nas últimas décadas
extrapolei meus próprios limites. Arvorei-me em rei Midas, criei em
torno de mim uma legião de devotos, como se eu tivesse poderes divinos.
Meus apóstolos - os economistas neoliberais - saíram pelo mundo a
apregoar que a saúde financeira dos países estaria tanto melhor quanto
mais eles se ajoelhassem a meus pés.
Fiz governos e opinião pública
acreditarem que o meu êxito seria proporcional à minha liberdade.
Desatei-me das amarras da produção e do Estado, das leis e da
moralidade. Reduzi todos os valores ao cassino global das Bolsas,
transformei o crédito em produto de consumo, convenci parcela
significativa da humanidade de que eu seria capaz de operar o milagre
de fazer brotar dinheiro do próprio dinheiro, sem o lastro de bens e
serviços.

Abracei a fé de que, frente às
turbulências, eu seria capaz de me auto-regular, como ocorria à
natureza antes de ter seu equilíbrio afetado pela ação predatória da
chamada civilização. Tornei-me onipotente, supus-me onisciente,
impus-me ao planeta como onipresente. Globalizei-me.
Passei a jamais fechar os olhos.
Se a Bolsa de Tóquio silenciava à noite, lá estava eu eufórico na de
São Paulo; se a de Nova York encerrava em baixa, eu me recompensava com
a alta de Londres. Meu pregão em Wall Street fez de sua abertura uma
liturgia televisionada para todo o orbe terrestre. Transformei- me na
cornucópia de cuja boca muitos acreditavam que haveria sempre de jorrar
riqueza fácil, imediata, abundante.
Peço desculpas por ter enganado a
tantos em tão pouco tempo; em especial aos economistas que muito se
esforçaram para tentar imunizar-me das influências do Estado. Sei que,
agora, suas teorias derretem como suas ações, e o estado de depressão
em que vivem se compara ao dos bancos e das grandes empresas.
Peço desculpas por induzir
multidões a acolher, como santificadas, as palavras de meu sumo
pontífice Alan Greenspan, que ocupou a sé financeira durante dezenove
anos. Admito ter ele incorrido no pecado mortal de manter os juros
baixos, inferiores ao índice da inflação, por longo período. Assim,
estimulou milhões de usamericanos à busca de realizarem o sonho da casa
própria. Obtiveram créditos, compraram imóveis e, devido ao aumento da
demanda, elevei os preços e pressionei a inflação. Para contê-la, o
governo subiu os juros... e a inadimplência se multiplicou como uma
peste, minando a suposta solidez do sistema bancário.
Sofri um colapso. Os paradigmas
que me sustentavam foram engolidos pela imprevisibilidade do buraco
negro da falta de crédito. A fonte secou. Com as sandálias da humildade
nos pés, rogo ao Estado que me proteja de uma morte vergonhosa. Não
posso suportar a idéia de que eu, e não uma revolução de esquerda, sou
o único responsável pela progressiva estatização do sistema financeiro.
Não posso imaginar-me tutelado pelos governos, como nos países
socialistas. Logo agora que os Bancos Centrais, uma instituição
pública, ganhavam autonomia em relação aos governos que os criaram e
tomavam assento na ceia de meus cardeais, o que vejo? Desmorona toda a
cantilena de que fora de mim não há salvação.
Peço desculpas antecipadas pela
quebradeira que se desencadeará neste mundo globalizado. Adeus ao
crédito consignado! Os juros subirão na proporção da insegurança
generalizada. Fechadas as torneiras do crédito, o consumidor se armará
de cautelas e as empresas padecerão a sede de capital; obrigadas a
reduzir a produção, farão o mesmo com o número de trabalhadores. Países
exportadores, como o Brasil, verão menos clientes do outro lado do
balcão; portanto, trarão menos dinheiro para dentro de seu caixa e
precisarão repensar suas políticas econômicas.
Peço desculpas aos contribuintes
dos países ricos que vêem seus impostos servirem de bóia de salvamento
de bancos e financeiras, fortuna que deveria ser aplicada em direitos
sociais, preservação ambiental e cultura.
Eu, o mercado, peço desculpas por
haver cometido tantos pecados e, agora, transferir a vocês o ônus da
penitência. Sei que sou cínico, perverso, ganancioso. Só me resta
suplicar para que o Estado tenha piedade de mim.
Não ouso pedir perdão a Deus,
cujo lugar almejei ocupar. Suponho que, a esta hora, Ele me olha lá de
cima com aquele mesmo sorriso irônico com que presenciou a derrocada da
torre de Babel.

Frei Betto * Escritor e assessor de movimentos sociais - [Autor de "Cartas da Prisão" (Agir), entre outros livros].

Criando um monstro...

SOBRE O CASO OCORRIDO EM S.PAULO
DESCONHEÇO O AUTOR


O que pode criar um monstro?

O que leva um rapaz de 22 anos a estragar a própria vida e a vida de outras duas jovens por... Nada?

Será que é índole?

Talvez, a mídia?

A influência da televisão?

A situação social da violência?
Traumas? Raiva contida? Deficiência social ou mental? Permissividade da sociedade? O que faz alguém achar que pode comprar armas de fogo, entrar na casa de uma família, fazer reféns, assustar e desalojar vizinhos, ocupar a polícia por mais de 100 horas e atirar em duas pessoas inocentes?

O rapaz deu a resposta: 'ela não quis falar comigo'. A garota disse não, não quero mais falar com você. E o garoto, dizendo que ama, não aceitou um não. Seu desejo era mais importante.

Não quero ser mais um desses psicólogos de araque que infestam os programas vespertinos de televisão, que explicam tudo de maneira muito simplista e falam descontextualizadam ente sobre a vida dos outros sem serem chamados. Mas ontem, enquanto não conseguia dormir pensando nesse absurdo todo, pensei que o não da menina Eloá foi o único. Faltaram muitos outros nãos nessa história toda.

Faltou um pai e uma mãe dizerem que a filha de 12 anos NÃO podia namorar um rapaz de 19. Faltou uma outra mãe dizer que NÃO iria sucumbir ao medo e ir lá tirar o filho do tal apartamento a puxões de orelha. Faltou outros pais dizerem que NÃO iriam atender ao pedido de um policial maluco de deixar a filha voltar para o cativeiro de onde, com sorte, já tinha escapado com vida. Faltou a polícia dizer NÃO ao próprio planejamento errôneo de mandar a garota de volta pra lá. Faltou o governo dizer NÃO ao sensacionalismo da imprensa em torno do caso, que permitiu que o tal sequestrador conversasse e chorasse compulsivamente em todos os programas de TV que o procuraram. Simples assim. NÃO. Pelo jeito, a única que disse não nessa história foi punida com uma bala na cabeça.

O mundo está carente de nãos. Vejo que cada vez mais os pais e professores morrem de medo de dizer não às crianças. Mulheres ainda têm medo de dizer não aos maridos ( e alguns maridos, temem dizer não às esposas ). Pessoas têm medo de dizer não aos amigos. Noras que não conseguem dizer não às sogras, chefes que não dizem não aos subordinados, gente que não consegue dizer não aos próprios desejos. E assim são criados alguns monstros. Talvez alguns não cheguem a sequestrar pessoas. Mas têm pequenos surtos quando escutam um não, seja do guarda de trânsito, do chefe, do professor, da namorada, do gerente do banco. Essas pessoas acabam crendo que abusar é normal. E é legal.

Os pais dizem, 'não posso traumatizar meu filho'. E não é raro eu ver alguns tomando tapas de bebês com 1 ou 2 anos. Outros gastam o que não têm em brinquedos todos os dias e festas de aniversário faraônicas para suas crias. Sem falar nos adolescentes. Hoje em dia, é difícil ouvir alguém dizer não, você não pode bater no seu amiguinho. Não, você não vai assistir a uma novela feita para adultos. Não, você não vai fumar maconha enquanto for contra a lei. Não, você não vai passar a madrugada na rua. Não, você não vai dirigir sem carteira de habilitação. Não, você não vai beber uma cervejinha enquanto não fizer 18 anos. Não, essas pessoas não são companhias pra você. Não, hoje você não vai ganhar brinquedo ou comer salgadinho e chocolate. Não, aqui não é lugar para você ficar. Não, você não vai faltar na escola sem estar doente. Não, essa conversa não é pra você se meter. Não, com isto você não vai brincar. Não, hoje você está de castigo e não vai brincar no parque.

Crianças e adolescentes que crescem sem ouvir bons, justos e firmes NÃOS crescem sem saber que o mundo não é só deles. E aí, no primeiro não que a vida dá ( e a vida dá muitos ) surtam. Usam drogas. Compram armas. Transam sem camisinha. Batem em professores. Furam o pneu do carro do chefe. Chutam mendigos e prostitutas na rua. E daí por diante.

Não estou defendendo a volta da educação rígida e sem diálogo, pelo contrário. Acredito piamente que crianças e adolescentes tratados com um amor real, sem culpa, tranquilo e livre, conseguem perfeitamente entender uma sanção do pai ou da mãe, um tapa, um castigo, um não. Intuem que o amor dos adultos pelas crianças não é só prazer - é também responsabilidade. E quem ouve uns nãos de vez em quando também aprende a dizê-los quando é preciso. Acaba aprendendo que é importante dizer não a algumas pessoas que tentam abusar de nós de diversas maneiras, com respeito e firmeza, mesmo que sejam pessoas que nos amem. O não protege, ensina e prepara.

Por mais que seja difícil, eu tento dizer não aos seres humanos que cruzam o meu caminho quando acredito que é hora - e tento respeitar também os nãos que recebo. Nem sempre consigo, mas tento. Acredito que é aí que está a verdadeira prova de amor. E é também aí que está a solução para a violência cada vez mais desmedida e absurda dos nossos dias.